Há alguns muitos anos, transitando entre as prateleiras de uma livraria, me deparei com um livro miudinho, de cor vibrante e título extremamente convidativo. O exemplar era Sejamos todos feministas de autoria de Chimamanda Ngozi Adichie.
Imediatamente o adquiri e ali mesmo, no café que ficava ao lado do comércio, o li por completo. Que texto! Que simplicidade! Que forma leve de se comunicar! Foi amor à primeira leitura!
Curiosa, busquei saber mais sobre a autora e seus escritos. De lá para cá, a acompanho com atenção e Hibisco Roxo, seu primeiro romance, ocupa um lugar cativo todo especial em meu coração literário.
Hibisco Roxo é ficção histórica que leva o leitor rumo à Nigéria, permitindo conhecê-la mais e melhor. Com o livro, é possível observar alguns dos hábitos nigerianos, ter acesso à culinária local a partir das descrições cuidadosas de pratos diversos e atestar as inúmeras semelhanças entre aquele país e o Brasil.
Essa é uma leitura contemporânea fundamental! Leiam!
Além de essencial, Hibisco Roxo é triste! O livro desperta dores, angústia e deposita um peso nos ombros de quem o lê. Isso tudo porque é muito difícil ter acesso ao amargor ali presente e se manter indiferente a ele.
O tema da violência doméstica é descrito com muito cuidado por Chimamanda. Através da sua obra, ela permite a construção da compreensão de que essa prática, a despeito de gerar marcas e cicatrizes permanentes em suas vítimas, pode passar invisível diante dos olhos de quem não vive a intimidade do lar que abriga a dor.
Hibisco Roxo é um excelente instrumento para trabalhar o assunto das agressões privadas através da literatura. Suas páginas expõem com precisão as sutilezas da dependência emocional que costuma ser percebida na figura da agredida com relação ao seu agressor.
Nem sempre é fácil absorver a ideia de que o homem que despertou amor e paixão é também o algoz do cotidiano. Justamente por isso, a enorme importância do apoio psicossocial no acompanhamento das mulheres agredidas. A psicologia, o serviço social e o Direito são o tripé fundamental desse processo de acolhida e proteção da vítima.
Não só a dependência emocional se destaca como motivo mantenedor da união entre agredida e agressor, a dependência financeira também. Estudos realizados no Brasil expuseram que 34% das vítimas de violência doméstica persistem vivendo com os seus agressores, seja por dependência afetiva ou econômica.[1]
Além de trazer a violência doméstica como tema central capilarizado em trechos inúmeros, Hibisco Roxo aborda outros assuntos áridos: autoritarismo, sucateamento da universidade, repressão às mobilizações estudantis, perseguição à imprensa e aos docentes, fanatismo religioso, colonização e esvaziamento da humanidade do povo colonizado são apenas alguns exemplos.
Quanto amor e admiração um pai agressor pode despertar em sua filha agredida?
Kambili, menina adolescente de 15 anos, é a narradora responsável por apresentar os fatos e personagens da obra. Esse dado sobre o modo de condução da narrativa é muito importante, pois ela, filha encantada pelo pai Eugene, o romantiza e o idealiza.
A autoridade excessiva de Eugene não é intencionalmente disfarçada ou apagada por Kambili. São a naturalidade e sutileza com que ela descreve determinadas passagens que colocam o leitor em uma zona de incerteza quanto à extensão e ao exato formato da violência praticada por seu pai.
Kambili expõe, sem qualquer análise crítica insurgente e despida de revolta aparente, as rotinas do seu lar repletas de violências simbólicas.
A verbalização relativamente “serena” sobre as posturas de Eugene não impede que o leitor crítico perceba como ele promove o patrocínio do sufocamento das almas dos seus parentes, a negação das suas individualidades e o tolhimento das suas existências.
Os espíritos oprimidos se revelam muito cedo no texto e acabam por também sufocar o leitor. O incômodo com a leitura parece inevitável.
Se a violência simbólica logo aparece, a violência física persiste na penumbra e só se expõe sem pudores após muitas páginas lidas: socos, tapas, água fervente para queimar pés e mãos e mesa quebrada no ventre da esposa grávida são algumas das passagens que maltratam leitores e personagens.
Eugene: o agressor admirado pela comunidade local
Eugene estipulava horários de atividades extremamente rígidos para os seus filhos, obrigava-os a terem desempenho escolar impecável e dizia que ambos deveriam ser os primeiros alunos de suas turmas. Ser bom não bastava, era preciso ser o melhor!
Ele controlava o tempo de duração dos sonos de cada um, as roupas que seriam vestidas e conduzia com dureza as práticas religiosas da família. Para Eugene, as refeições à mesa deveriam acontecer com disciplina, ele determinava quem poderia falar, em que ocasião poderia falar e como o faria.
Com a figura de Eugene, é possível entender muito bem como as relações de poder são moldadas em famílias que possuem um patriarca forte e opressor. A fala de Eugene e até mesmo o seu silêncio possuem o poder inegável do domínio.
Se a sua mudez e a verbalização de sua voz violentam, as suas ações físicas extremas mais ainda! Eugene comete violências materiais terríveis, direciona castigos físicos dolorosos e executa surras de quase morte contra os seus filhos e esposa.
Se a figura do narrador mudasse, se Jaja, por exemplo, o irmão mais velho de Kambili, a tivesse ocupado, certamente ele nos revelaria um outro Papa ainda nas primeiras páginas da obra.
Jaja é, em minha interpretação, uma espécie de personificação da tentativa frustrada de exercício da justa raiva. Digo isso porque ele, opositor ferrenho da figura de seu pai, não consegue construir um espaço favorável ao exercício amplo de sua insurgência. Tenta falar e é calado, tenta agir e é violentado!
As punições físicas aplicadas por Papa contra as “desobediências” dos seus filhos e esposa são um horror. De onde vem esse ímpeto da agressão se o seu pai e a sua irmã são apresentados como figuras doces e razoáveis?
Papa foi educado por seminaristas colonizadores rigorosos e em seu processo de formação recebeu a aplicação de penalidades físicas inúmeras. Violência gera violência, dizem por aí. Não que isso justifique a barbárie que Papa representa, não a justifica, porém a explica em alguma medida.
Eugene é uma figura complexa, educado na via do cristianismo, nega a importância da cultura, religião e idioma nigerianos. Admira os homens de pele branca, exalta o inglês britânico e a fé católica, especialmente quando verbalizada em Latim.
Não há espaços para maniqueísmos simplistas em Hibisco Roxo. Papa, empresário rico e bem sucedido, era praticante assíduo da caridade, realizava doações imensas, a comunidade o considerava um cristão exemplar, ele ia sempre à Igreja, foi premiado pela Anistia Internacional, possuía um jornal que denunciava as atrocidades autoritárias do Governo, era um patrão que cuidava com atenção dos seus empregados e dos familiares dos empregados.
Para os que não compartilhavam de sua intimidade, era um homem bondoso. Para os seus filhos e esposa, um agressor temido.
Kambili: a voz que é também silêncio
Um outro ponto paradoxal e que eu não posso deixar mencionar é o de que Kambili, mesmo ocupando a posição de narradora, é a personificação do silêncio.
Esvaziada pelas violências que sofreu, com a plenitude de sua existência negada, ela não diz espontaneamente o que pensa ou sente, não pode verbalizar as suas dores reais, sequer sabe como fazer isso. Sua fala é baixa, suas palavras são poucas e a sua existência é contida.
Reaja, Kambili, reaja! Era isso que eu desejava a ela sempre me sentindo muito inquieta e incomodada com a sua postura inerte. Pobre, Kambili, não é fácil romper com amarras de violência invisíveis.
Uma passagem sobre Kambili que me chamou atenção foi aquela que relatou a primeira vez que ela ouviu o som de sua própria gargalhada. Kambili não ria assim na casa dos pais, riu quando esteve hospedada na casa de sua tia Ifeoma.
Dá para imaginar o que significar viver por mais de uma década sem jamais ter escutado o som de sua própria risada dada em voz alta?
A violência doméstica imediatamente associada à imagem de um homem agredindo a sua companheira frequentemente transborda para além desse quadro e atinge as crianças que vivem naquele lar. As crianças podem ser violentadas com tapas, socos, empurrões ou afetadas pelas dores emocionais da visualização constante das surras e discussões presenciadas.
É sempre muito importante lembrar que a violência doméstica também se externa através das opressões psicológicas. A Lei Maria da Penha, inclusive, aborda essa complexidade e trata das violências domésticas físicas, sexuais, psicológicas, morais e patrimoniais.
Ifeoma e a sororidade necessária que fortalece e encoraja
Ifeoma é personagem fundamental no processo de mudança sutil vivido por Kambili e sua mãe Beatrice! É ela quem traz para o leitor a esperança da mudança, o sonho da ruptura com a violência praticada dia a dia por seu irmão Eugene.
Professora universitária culta e questionadora, Ifeoma discorda de Eugene em diversas passagens e expõe a ele as suas inquietudes e divergências. Ela se sente indignada, por exemplo, com o fato de Eugene distanciar os seus filhos do avô.
Eugene não visita o pai, o abandona e impede que os netos tenham contato livre com ele pelo simples fato de o seu pai exercer a fé nigeriana nativa, por ser um “pagão”, um homem marcado pelo “pecado”.
Ifeoma não só diverge de Eugene no tema da diversidade religiosa e tolerância, como também é absolutamente contrária às agressões que ele pratica contra os próprios filhos e esposa. Não por acaso ela oferece o seu lar, o seu apoio e a sua carona de fuga para Beatrice, a cunhada vítima.
Sororidade, apoio, acolhimento todos esses termos podem ser associados à figura de Ifeoma. Beatrice, contudo, agredida reiteradamente, perdida de si, esvaziada e sem autonomia financeira, mesmo diante da mão estendida por Ifeoma, não consegue sair do casamento opressor que a machuca e invisibiliza.
Quantas mulheres não sentem essa mesma dificuldade? Quantas Ifeomas são necessárias para construir uma rede de apoio privada capaz de viabilizar a efetiva interrupção de um ciclo de violência doméstica?
Do perigo de se viver uma história única
Tia Ifeoma, a luz de esperança da mudança, em um determinado ponto da narrativa convida os seus sobrinhos para irem à sua casa passar uns dias. Após muito debate, com o apoio de Beatrice e escondendo de Papa a inteira versão da verdade, ela consegue a autorização dele para isso.
Você conhece alguém que precisou mentir para um pai rigoroso para que assim pudesse realizar algo que desejava e que contou com o apoio de uma mulher da família para viabilizar a mentira e concretizar o seu desejo?
Em um TED famoso já transformado em livro, Chimamanda apresenta o perigo de se conhecer uma história única. A viagem de Jaja e Kambili para a casa de Tia Ifeoma é a porta de acesso dos dois ao mundo das histórias de vida plurais.
O nosso mundo definitivamente é do tamanho daquilo que a gente conhece!
Se faltava dinheiro e luxo na casa da tia, sobrava liberdade, respeito à diversidade e tolerância. Havia conversas nas mesas de refeição, gargalhadas, barulho, trabalho cooperativo, senso crítico dos primos jovens, havia respeito às tradições africanas.
Amaka, prima de Kambili, jovem questionadora, é para ela sinônimo de disrupção. Dividir a casa, o quarto e as vivências com Amaka permitiu a Kambili se transformar, se libertar. Em seu ritmo, é bem verdade, mas sem Amaka talvez esse processo de voo suave jamais tivesse se iniciado.
Certa vez li em uma crítica a seguinte frase: “Amaka é a semente do feminismo que todas nós precisamos encontrar no meio do caminho”. Concordo absolutamente! Desejo “Amakas” nas vidas de todas, venham elas como vierem, com as idades que tiverem e as vivências de liberdade que puderem apresentar!
Houve uma Amaka para Beatrice?
Para Beatrice, não houve propriamente uma “Amaka” a libertando. Ela apanhou demais, sofreu muito, teve gravidezes interrompidas pelas surras que levou e ainda assim não conseguiu deixar Eugene. Viu os filhos sendo psicologicamente sufocados e fisicamente castigados e persistiu ali ao lado do seu marido.
Um dia, após uma agressão extremamente violenta e diante da quase morte de Kambili, Beatrice decide mudar. O faz em silêncio, sozinha, na solidão habitual que acompanha a mulher agredida em casa.
Beatrice decidiu pelo fim por si mesma, mas houve uma mulher a ajudando na execução desse final. Sissi, sua funcionária fiel, a auxiliou. E assim, aos poucos, noite após noite, a cada novo gole de chá, ela imaginava a sua liberdade mais próxima. Um dia, enfim, Papa morreu envenenado
A morte de Papa libertou Beatrice das dores físicas das pancadas, mas ela continuou mentalmente aprisionada. Jaja, seu filho, assumiu a culpa pela morte do pai, foi preso, apanhou no cárcere, sofreu muito e teve a sua dignidade ainda mais afetada.
Os relatos das visitas a Jaja são extremamente tristes e dolorosos. É possível visualizar o arrastar dos corpos da mãe e da filha rumo ao prédio prisional para verem o filho e o irmão aprisionado.
Após uma imensa jornada de dor, culpa e massacre da alma materna, Jaja é solto, volta para casa e ali, os três, ainda sufocados por tudo o que Papa representou e representa, constatam juntos e silenciosamente a necessidade de se reinventarem.
A libertação de Jaja o trouxe de volta ao lar, mas não o livrou da prisão que ele carrega dentro de si. Kambili e Beatrice também persistem presas ao seu passado de agressão.
A violência doméstica realmente se encerra em plenitude ou reverbera para sempre dentro da alma de quem a sofreu?
É possível fazer nascer novas flores em espaços visceralmente marcados pelo cinza de asfalto das dores profundas?
Quantas Beatrices, Jajas e Kambilis você conhece?
[1] BUCHER-MALUSCHKE, Júlia S. N. F. PORTO, Madge. A permanência das mulheres em situações de violência: considerações psicológicas. Psic.: Teor. e Pesq.. Brasília, Vol. 30, n. 3, pp. 125-276, 2014, p. 269.